(...)
Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezinha que
de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos e com mais
força enquanto a noite avança. Não são pensamentos escuros, embora
noturnos.
Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você
ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você
não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando
eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo,
sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só
conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende?
Eu quis tanto ser a tua paz, quis tanto que você fosse o meu encontro.
Quis tanto dar, tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E sem
solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria
pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por
limitação humana. Mas o que tinha, era seu.
Mas se você tivesse ficado, seria diferente?
Melhor interromper o processo em meio: quando se conhece o fim, quando
se sabe que doerá muito mais -por que ir em frente? Não há sentido: melhor
escapar deixando uma lembrança qualquer, lenço esquecido numa gaveta, camisa
jogada na cadeira, uma fotografia –qualquer coisa que depois de muito tempo a
gente possa olhar e sorrir, mesmo sem saber por que. Melhor do que não sobrar
nada, e que esse nada seja áspero como um tempo perdido.
Tinha terminado, então. Porque a gente, alguma coisa dentro da gente,
sempre sabe exatamente quando termina. Mas de tudo isso, me ficaram coisas tão
boas. Uma lembrança boa de você, uma vontade de cuidar melhor de mim, de ser
melhor para mim e para os outros. De não morrer, de não sufocar, de continuar
sentindo encantamento por alguma outra pessoa que o futuro trará, porque sempre
traz, e então não repetir nenhum comportamento. Ser novo.
Mesmo que a gente se perca não importa.Que tenha se transformado em
passado antes de virar futuro.Mas que seja bom o que vier, para você, para mim.
Te escrevo, enfim, me ocorre agora, porque nem você nem eu somos descartáveis.
E amanhã tem sol.
E eu acho que é por isso que te escrevo, para cuidar de ti, para cuidar
de mim – para não querer, violentamente não querer de maneira alguma ficar na
sua memória, seu coração, sua cabeça, como uma sombra escura.
(Caio Fernando Abreu)
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