Abro uma página da minha agenda para demarcar mais uma vez o território de minha liberdade e o dos meus deveres — que é onde ela começa a perder pé.
A fantasia não pede licença para se desenrolar: logo vejo uma infinidade de mesas e escrivaninhas, cada uma com sua agenda, nela a floresta dos compromissos, mal sobrando alguma trilha estreita para andar e respirar. (Nas folhas desta minha atual quero abrir entrelinhas para contemplar a árvore em flor diante de minha janela, ou pegar nos braços uma das crianças que povoam esta casa.)Uma tarde tranquila”, original que David L. Cawthone pintou com a boca |
Nem uma miragem ao longe?
Pessoalmente não vivo sem uma agenda, aquelas de bloco, ao lado do computador. Às vezes olhar a folhinha me dá alegria: um encontro bom, ou um dia inteiro só pra mim. Em outras folhas, um engarrafamento de garatujas (minha letra, horror das professoras desde os primeiros anos de escola) com mais compromissos do que meu fundamental desejo de liberdade quereria.
Agenda pode ser tormento e prisão. Mas pode ser liberdade, se a gente inventar brechas: em plena tarde da semana, caminhar na calçada; sentar ao sol na varanda do apartamento; deitar na grama do parque ou jardim, por menor que ele seja, e como criança olhar as nuvens, interpretando suas formas: camelo, coelho, árvore ou anjo.
Ou: quinze minutos para se recostar para trás na cadeira (pode ser do escritório mesmo) e espiar o céu fora da janela; ir até a sala, esticar-se no sofá com as pernas sobre o braço do próprio, e ouvir música, ver televisão, ler, ler, ler... ou simplesmente não fazer nada.
O ócio é uma possibilidade infinita a ser explorada.
Não falo da inércia, do desânimo, do vazio melancólico. Jamais falarei de ficar de robe velho e pantufas (vi numa vitrine algumas com cara de cachorro e até orelhas!) pela casa até o meio da tarde.
Falo de viver.
"Parar, olhar, escutar", dizia um aviso nos trilhos do trem quando havia trem entre minha cidade e Porto Alegre. A gente passava de carro sobre o trilho, e eu imaginava o horror de alguém infringir isso e ser explodido pelo monstro de ferro e fumaça.
A vida há de rolar por cima da gente, reduzindo a poeirinha inútil quem se esquecer de às vezes parar pra pensar... mas sem se desmontar; olhar em torno ou para dentro: paisagens belas, ou áridas (sempre dá pra plantar um capim) ou quem sabe coloridas (a alma pode brincar de esconde-esconde entre as folhas).
E escutar: a música do universo, o canto do sabiá (que tem começado às 3 da madrugada fria, atarantado neste clima estranho); a risada da criança no andar de cima; enfim, o chamado da vida que nos convoca de mil formas: anda, sai do marasmo, viveeeeeeeeeee!!
Que nossas agendas (também as interiores) nos permitam muitas vezes a plenitude do nada sorvido como um gole de champanha, celebrando tudo.
Sem culpa.
* Do livro: Pensar é transgredir.
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