segunda-feira, 30 de junho de 2025

O bracinho mais disputado do mundo

 

Aqui em casa, existe um território valioso. Pequeno, macio, muitas vezes cansado… mas disputado como se fosse ouro: meu braço.

Sim, o meu bracinho — esse mesmo, que passa o dia inteiro lavando louça, digitando, segurando mochila, penteando cabelo, fazendo cafuné e passando protetor solar enquanto diz: “apressa, vai atrasar!”. Esse bracinho virou patrimônio afetivo dos meus filhos.

Nael, com seus cinco anos e uma sabedoria emocional que me desmonta, já começa o dia dizendo:
— “Mamãe, ficar com você é o melhor.”
E diz isso com os olhos inchados de sono, tentando negociar a permanência enquanto veste a farda, questionando, mais uma vez, por que ele não pode ficar comigo todos os dias.
Outro dia, ele foi mais fundo. Me acusou, com voz de mágoa:
— “Você mentiu, mamãe. Eu coloco a mão no peito e você não responde!”
Foi como se tivesse apertado um botão dentro de mim que nem eu sabia que existia.
Respirei. Abracei. Expliquei mais uma vez sobre a saudade, sobre imaginar o tum-tum do meu coração e sentir que estou ali. Mas ele quer resposta, ele quer presença de verdade — não metáforas poéticas. E eu entendo. Como entendo.

Naeli, a pequena de três anos, tem uma doçura própria. Mas não pensem que ela fica de fora dessa novela afetiva.
Chega a noite e ela já olha desconfiada:
— “Hoje eu durmo agarradinha com você, tá?”
E repete isso em looping, até eu confirmar com beijo, olhar, toque e todas as garantias possíveis.

Aqui em casa, a logística do sono é quase uma partida de xadrez.
Eu ponho Naeli para dormir. O pai fica com Nael. Mas, claro, isso está longe de ser simples.
Porque os dois querem a mesma coisa: o meu braço.
Aquele lugar quente, confortável e acolhedor, onde eles parecem sentir que o mundo para de girar rápido demais.

Às vezes choro escondida.
Não de tristeza, mas de um amor exausto.
Porque ser a pessoa preferida do mundo de duas criaturinhas tão intensas, tão amorosas, tão carentes e tão cheias de vida... é um privilégio que pesa.

Eles dormem.
Aos berros, às vezes.
Disputando quem chega primeiro ao lado do meu corpo.
E eu ali, um pouco esticada demais, meio entortada, mas presente.
Sendo travesseiro, porto seguro, remédio de saudade e termômetro emocional.

E enquanto eles não crescem — e não entendem que o amor de mãe é tão grande que se estica para caber nos dois, mesmo que eu só tenha dois braços —, sigo cedendo meu espaço e minha paciência, tentando, todo dia, ensinar que o amor deles não se divide: ele se multiplica.

Mas confesso: tem dias em que eu também queria um colo.
Um bracinho só para mim.
E alguém que me dissesse:
— “Pode dormir. Tá tudo bem. Eu fico aqui com você.”

terça-feira, 24 de junho de 2025

Juliana, o silêncio e o abismo

Juliana queria ver o mundo de cima.

Fez como tantos fazem: arrumou a mochila, pesquisou trilhas, escolheu um vulcão, daqueles com nome bonito e paisagens cinematográficas. O Monte Rinjani, na Indonésia, é um destino disputado por aventureiros — e foi lá que ela sonhou estar.

Não há nada de estranho nisso. O desejo de ver o nascer do sol do alto, de se sentir pequena diante da natureza gigante, de registrar uma experiência que não cabe em palavras. Isso é humano. Isso é vida.

Mas a vida de Juliana não pôde continuar.
Porque a caminhada foi longa, o cansaço foi real, e o guia — pago para acompanhá-la — a deixou para trás.
Ali, sozinha, exausta, ela caiu.
Não caiu apenas do penhasco.
Caiu num vácuo de responsabilidades.

Quatro dias.
Quatro dias para que dissessem que o corpo estava ali.
Quatro dias para a família implorar por respostas, ser enganada com informações falsas e viver a tortura do talvez.
Quatro dias que pareceram uma eternidade em cima de uma montanha onde ninguém deveria estar só.

A essa altura, a história já é notícia.
Matérias vêm e vão.
Nomes, idades, mapas, notas da Embaixada, falas genéricas sobre "esforços conjuntos".

Mas a gente sabe — no fundo sabe — que tudo poderia ter sido diferente.

Se o guia tivesse parado.
Se houvesse sistema de rastreio.
Se o Brasil tivesse agido mais rápido.
Se a empatia fosse política oficial.

A história de Juliana escancara tudo aquilo que fingimos não ver:
Que o turismo de aventura virou uma indústria lucrativa demais para se importar com segurança.
Que o socorro vem sempre tarde quando o problema está longe dos centros ou das prioridades diplomáticas.
E que a dor, quando não é nossa, ainda é tratada como detalhe.

Ela não queria morrer.
Ela queria viver intensamente.
E por isso, talvez, não seja o caso de culpar o sonho — mas sim, de exigir que sonhar não custe a vida.

Juliana não é só mais uma vítima.
Ela é o nome que grita para além das pedras e da cratera.
Ela é o eco que não pode se perder.

Para que outras mulheres, jovens, viajantes, mães e filhas possam voar, subir montanhas e voltar.
Com histórias, com fotos, com a alma leve — não com seus nomes gravados em lápides distantes.

Juliana queria ver o mundo de cima.
E o que ela nos deixou foi um alerta:
Não há beleza no mundo que compense o abandono.

domingo, 22 de junho de 2025

Eles sonhavam alto

A recente tragédia do balão em Praia Grande, Santa Catarina, deixou marcas profundas no ar e nos corações: entre 21 pessoas a bordo, oito morreram e 13 sobreviveram, após um incêndio no cesto durante o voo turístico . Vítimas com sonhos, projetos, histórias — como médicos, professores, casais em viagem, todos em busca de emoção e aventura no céu.

É difícil não sentir a brevidade da vida nesse momento, perceber como projetos e planos podem ser interrompidos em um instante. Essas pessoas estavam desfrutando pequenas grandes alegrias — o vento cortando o rosto, a paisagem lá embaixo, o riso solto. Eram sonhos pairando, literalmente, nos céus.

E, diante disso, me vem uma imagem poderosa na mente: a vida é frágil como um balão, leve como um sopro, e preciosa como cada segundo que respiramos. Que possamos aprender com eles a viver sem deixar para depois, a buscar a alegria com equilíbrio, a cuidar uns dos outros — e a celebrar cada amanhecer como uma nova asa em nossas próprias aventuras.


Eles queriam viver.

E viver, às vezes, é isso: sair cedo de casa com o coração acelerado, empolgado com o frio na barriga de algo novo — de algo tão simbólico quanto voar.


Eles queriam colecionar memórias.

Quem sabe era um presente de aniversário, uma celebração entre amigos, um pedido de casamento sonhado. Havia ali sonhos que nem chegaram a ser compartilhados, sorrisos que não tiveram tempo de ser fotografados, histórias que acabaram interrompidas no meio do voo.


E, no entanto, é impossível falar de tragédias sem falar também do que nos resta:

A memória.

A lembrança de que a vida é sempre hoje.

Que os abraços não dados, os planos adiados, os “depois a gente vê” podem não encontrar o tempo que esperavam.

Que a rotina que nos consome pode, num piscar de olhos, deixar de existir — e tudo o que fica é o que fizemos com os nossos dias.

O balão caiu, sim.

Mas lá no alto havia coragem.

Havia amor.

Havia vontade de ver o mundo de outro ângulo.

E que isso não se perca.

Que a dor se transforme em presença.

Que o medo nos ensine sobre valor.

E que a brevidade da vida não nos paralise — mas nos desperte.

Porque, no fundo, viver é saber que não temos controle algum, mas ainda assim escolher embarcar, olhar para o céu, e dizer com o coração cheio: valeu a pena tentar voar.

terça-feira, 10 de junho de 2025

Mesa para uma (e um mundo inteiro dentro)

 


Não lembro exatamente a última vez que saí sozinha. Sozinha de verdade.

Sem filhos pedindo suco.

Sem o companheiro puxando conversa sobre algo do dia.

Sem bolsa extra com brinquedo ou lanche.


Hoje eu saí.

Depois da aula, resolvi almoçar fora.

E não com alguém. Comigo.


Sentei. Escolhi a mesa. Peguei o cardápio como quem pega um espelho.

E veio aquele pensamento automático, repetido, como um mantra de autoajuda que a gente tenta acreditar:

"Aprecie a si mesma. A sua companhia. Você merece."


E eu tentei. De verdade.

Mas pra minha surpresa, foi até rápido escolher: pedi entrada, prato, sobremesa e suco de limão — o meu favorito.

Sem precisar dividir, consultar, adaptar. Era tudo pra mim.

E era exatamente o que eu queria.


A comida chegou, e junto com ela… o silêncio.

Não o silêncio de paz plena.

Mas aquele silêncio estranho, de quem está tentando lembrar como era mesmo estar só.

Sozinha com os próprios pensamentos, com o som dos talheres, com a liberdade de comer devagar.


E, aos poucos, fui lembrando.

Que sou boa companhia.

Que sei observar o mundo à minha volta sem narrar tudo em voz alta.

Que existe beleza em ouvir minha própria respiração entre uma garfada e outra.


Foi leve.

Meio esquisito no início.

Mas leve.


Comi com calma.

Saboreei cada parte.

E deixei o suco de limão, azedinho e fresco, me lembrar de que eu também gosto das coisas simples, daquelas que fazem sentido só pra mim.


E eu saí dali com uma certeza suave:

que às vezes a gente precisa mesmo reservar uma mesa pra uma.

Porque é nessa solidão voluntária que a gente se reencontra.

E percebe que, mesmo rodeada de amores,

a nossa própria presença também faz falta.


Não porque eu precise fugir da maternidade, do casamento, da rotina.

Mas porque, se eu não me buscar de vez em quando, posso me perder sem perceber.


Então hoje, naquela mesa de canto, com o garçom perguntando se estava tudo bem e eu respondendo “tá ótimo” com um sorriso sincero, eu celebrei um tipo diferente de presença: a minha.


E fiz um trato comigo mesma.

De sair mais vezes sem motivo especial.

De sentar sem pressa, andar sem destino, almoçar sem multitarefa.

De lembrar que, além de mãe, esposa, profissional…

Eu sou uma mulher.

Inteira.

Com gostos, pausas e pensamentos que valem ser vividos sozinha, de vez em quando.


Porque às vezes, ser sua melhor companhia é o reencontro mais necessário que existe.

sábado, 7 de junho de 2025

A boneca que se vestiu sozinha


Hoje de manhã, minha filha vestiu-se de boneca.

Não, não foi um vestido qualquer. Foi uma personagem. Uma versão dela mesma, imaginada no instante em que abriu a gaveta, escolheu uma roupinha “porque tava frio” — apesar dos 29 graus marcando firme no sábado ensolarado.


Meias longas. Sapatinho. Blusinha com detalhes delicados. Um cuidado digno de festa de princesa, embora o destino fosse a sala de estar.


Pediu penteado. Um laço aqui, um coque ali, e uma exigência muito clara: "tem que ficar igual da bonequinha, tá bom?"

E lá fui eu, com os dedos atentos e o coração derretido, trançando um pouco de cabelo e muito afeto.


Durante o dia, a blusinha deu lugar a um short. Mas as meias… ficaram. Os sapatinhos também.

Ela correu, pulou, aprontou. A casa virou cenário de aventura, salão de festa, consultório médico, loja de doces e zoológico — tudo ao mesmo tempo.


E quando a soneca da tarde veio, ela simplesmente adormeceu assim mesmo, de sapatinhos e meias, como se a brincadeira nunca tivesse acabado.


E eu, no meio da bagunça, só conseguia pensar:

Como ela é incrível.

Minha doce menina.


Com sua lógica de inverno tropical, sua independência teimosa, seu carinho espalhado em forma de brinquedo no chão e frases soltas que ecoam mais fundo do que parecem.


Ela não se vestiu só de boneca hoje.

Ela se vestiu de imaginação.

De liberdade.

De infância vivida com força.

E eu agradeço, em silêncio, por poder ver de perto essa menina crescendo com tanta autenticidade.


Ela é meu furacão de fita rosa.

Minha arte viva.

Meu caos mais bonito.



quinta-feira, 5 de junho de 2025

O silêncio entre uma coisa e outra

 

Tem dias — ou semanas, talvez — em que a gente sente que o mundo continua girando lá fora, mas aqui dentro tudo desacelerou.

Não é tristeza. Não é exatamente cansaço.

É outra coisa.


É como se o corpo inteiro pedisse uma pausa.

E a mente, mesmo agitada, começasse a falar mais baixo.

A atenção escapa, o foco se dissolve, o tempo parece mais longo. Até o tédio, de leve, visita.


Eu tenho estado assim.

Mais introspectiva, mais calada, mais dentro de mim.

E não sei se é o corpo falando — talvez sejam os hormônios bagunçados, talvez seja o tal do implante tentando ensinar uma nova dança biológica.

Ou talvez seja só a vida dizendo: senta, respira, olha pra você.


Esses momentos não vêm com avisos.

Eles interrompem sem bater na porta.

E, quando chegam, a gente se pergunta: “O que tá acontecendo comigo?”


Mas talvez não esteja acontecendo nada de errado.

Talvez esse seja só um período de pouso.

Sabe passarinho que voa demais e precisa parar no galho um pouco antes de seguir?

É isso.

Não é falta de produtividade.

É presença.

Ainda que esquisita, ainda que confusa.


Não é fraqueza.

É o corpo pedindo um minuto pra recalibrar.


E eu quis escrever isso pra você que, talvez, também esteja se sentindo meio estranha, meio dispersa, meio fora do ar.

Talvez seu corpo também esteja te puxando pra dentro.

Não pra te prender, mas pra te lembrar que você não é só tarefa, não é só entrega, não é só o que você faz pelos outros.


Você também é o que sente.

O que silencia.

O que observa quando ninguém está olhando.


Não se apresse.

Nem se cobre entender tudo agora.


Às vezes, o mais bonito que podemos fazer é simplesmente respeitar o tempo do nosso corpo.

E confiar que, mesmo em silêncio, a gente continua florescendo.


Devagar.

Mas viva.

Sempre viva.